Traumatizada pela perda de uma filha e praticamente convencida de que a vida já nem tinha mais sentido, essa mulher, um dia, teve uma visão luminosa a partir da qual passou a construir uma nova perspectiva para muita gente que não sabia sonhar e sequer tinha noção de cidadania
Arinos (MG) — Faltavam 30 dias para o aniversário de 19 anos. Era a única filha, no meio de dois meninos. Começava o último ano do ensino médio. E faria vestibular para direito. Sonhava ser juíza. Um telefonema, no meio da madrugada, silenciou para sempre todos os sonhos daquela menina. A mãe dela atendeu. Do outro lado da linha, uma amiga da filha falou vagamente sobre o acidente.
A mãe, desesperada, perguntou: “Minha filha tá bem?”. A amiga da filha desconversou. Não lhe deu mais explicações. A mãe, de pijamas, em companhia do filho mais velho, foi até o local do acidente, no caminho de Sobradinho. E lá se deparou com aquele monte de ferro retorcido. Ela quis resgatar a filha dali. Aos prantos, o filho gritou: “Mãe, não adianta mais. A Nathália tá morta”. O namorado dela, um rapaz de 21 anos, que dirigia o carro, também morreu na hora.
Naquele 27 de março de 2004, no meio daquela pista, Suely Carvalho Chaves, então com 49 anos, quis estar morta no lugar da filha. Depois daquela madrugada, nada mais foi como antes. A dor arrebentou a fé da mulher que acreditava em Deus fervorosamente. “Não sei quanto tempo fiquei sem acreditar n’Ele novamente”, ela diz. Suely chorou até as lágrimas secarem. Emagreceu, em menos de dois meses, 20 quilos. “Na missa de sétimo dia, minhas calças caíam todas. Eu só comia para que meu marido e meus outros dois filhos parassem de chorar por mim.”
A mãe dilacerou-se em dor que dói até sangrar. Fez calos nos joelhos de tanto se ajoelhar no Campo da Esperança, ao lado do túmulo da filha. Sem forças até para andar, sucumbiu. Ao todo, perdeu mais de 30kg. Foi liberada do emprego, numa administradora de plano de saúde, onde trabalhava como secretária executiva. “Minha chefe foi importantíssima nesse momento da minha vida.” Levaram Suely a uma psicóloga. Depois, a um psiquiatra. Remédio para depressão. “A minha vida tinha acabado de vez. Nada mais existia pra mim.”
Arrastando-se, ela foi à procura de um padre, 90 dias depois da morte da filha. “Ele foi cruel comigo. Disse que eu tinha que continuar a minha vida. E ainda perguntou o que minha filha fazia na rua àquela hora da madrugada”, lembra. O mundo de Suely partiu-se ao meio. Ela saiu daquela igreja mais desnorteada do que chegou. Além da dor, o homem de batina lhe imputou uma culpa que ela não tinha. A casa bonita da família, num condomínio perto de Sobradinho, ficou sem vida, sem luz, sem alegria.
Passaram-se seis meses. Em setembro daquele 2004, como milagre, ela teve o primeiro sonho com sua Nathália. “Uma cascata de luz desceu e ela surgiu no meio. Eu disse: ‘Minha filha, que saudade de você’. Aí, ela me respondeu: ‘Mãe, tô lhe mandando essa cascata de luz’. Foi a melhor coisa que aconteceu na minha vida, depois da morte dela.” Naquela manhã, pela primeira vez, Suely acordou diferente. “À tarde, estava mais equilibrada”, conta.
Os sonhos se sucederam. Em cada um, Nathália pedia para a mãe cessar o choro. Suely passou a escrever, com letras de dor, todos os sonhos que teve com a filha. Escrevia e relia, para se manter viva. Era sua sustentação. Ver a filha, mesmo que não conseguisse tocá-la, a colocou em pé. “Uma vez, ela entrou numa casa linda, cheia de portas. Eu tentei segui-la, mas não consegui achá-la.”
Renascimento
Fortalecida com a visão da filha em sonhos, Suely, o marido Lúcio de Oliveira Chaves, 54 anos, os filhos Bruno e Felipe e os amigos, que nunca a abandonaram, resolveram ajudar quem mais precisava. Mineira de Arinos, uma das cidades mais carentes do noroeste do estado, ela partiu para a terra onde corria na fazenda do pai. E viu que ali podia ajudar muitas crianças que não tinham acesso a quase nada.
Juntou forças com os amigos. Discutiram o que podiam fazer. E pensaram num instituto, em alguma coisa que levasse cidadania a quem nada tinha. Enxugando as lágrimas que ainda insistiam em molhar seu rosto, Suely lembrou-se de Arinos, onde nasceu. Em 2005, com o marido, voltou à cidade, distante 250km de Brasília. Visitou o bairro mais carente do município. No pobre Crispim Santana, onde a maioria das ruas ainda é de terra batida e banheiro vira artigo de luxo, Suely decidiu que ali estava a sua missão. “Queria fazer vidas seguirem.”
Descobriu que havia um terreno ali, à venda, de 30 mil metros quadrados. O valor? R$ 5 mil. Como comprar, se dinheiro não havia? Como construir, sem recursos? A corrente de amigos se juntou. Vieram rifas, bazares, galinhadas. E apareceu o dinheiro para a compra do terreno. “Dividimos o total em duas parcelas”, conta. Em abril de 2005, fundaram o Centro de Cultura Nathália. Em novembro do mesmo ano, a entidade recebeu a qualificação de Organização de Sociedade Civil de Interesse Público (Oscip), pelo Ministério da Justiça.
Os amigos passaram a contribuir mensalmente. “Foram cinco anos arrecadando dinheiro, para a construção do primeiro espaço. Há oito meses, ficou pronta a primeira parte: duas salas de aula, dois banheiros, um salão e a casa do caseiro”, explica Suely. Ela pediu demissão do emprego e voltou, definitivamente, à terra onde nascera.
"Meu nome é Nattália"
E chegou a hora do maior momento. A abertura de inscrição para os alunos da primeira série — de 6 a 7 anos — , encaminhados pela única escola do bairro. No espaço, as crianças têm reforço escolar, participam de atividades lúdicas e leituras. Tomam café da manhã e almoçam. As que chegam à tarde almoçam e, antes de voltar para casa, fazem um lanche.
Semana passada, Suely acordou cedo. Dirigiu 10 km, da fazenda até a cidade. E esperou que as mães chegassem com seus filhos. Eis que apareceu a primeira pessoa, com uma menininha. Suely pediu que mãe e filha entrassem. E se apresentou: “Muito prazer, meu nome é Suely”. E indagou, passando a mão sobre os cabelos cacheados da menina de 6 anos: “E o seu, qual é, minha bela?”. Ela sorriu para aquela mulher que nunca tinha visto e respondeu: “Meu nome é Nattália”. Suely engasgou. O coração bateu mais forte. Sem querer, encheu os olhos de lágrimas. E compreendeu exatamente o que tudo aquilo queria dizer.
E foram chegando as outras crianças. Vieram 85 — são filhos de domésticas, mães solteiras, desempregados, carvoeiros, pedreiros, carpinteiros e também de uma gente que só vive às custas do programa Bolsa Família. Algumas dessas crianças têm histórias de abusos e maus-tratos. Segunda-feira passada, começaram as atividades. A prefeitura entendeu a proposta e cedeu duas professoras para o centro. O restante é voluntário. Com os recursos arrecadados pelos amigos, Suely paga o caseiro para cuidar do espaço.
Na quarta-feira, Suely e Lúcio receberam o Correio para uma entrevista exclusiva. “É a primeira vez que falo da minha dor dessa forma”, ele diz, em lágrimas. Ela, também chorando, continua: “É uma dor que vai doer a vida inteira, mas é esse lugar que me ajudou a viver”. Enquanto isso, Nattália almoça. Saboreia um delicioso prato de arroz, feijão, frango e abóbora cozida. “Eu não fico mais na rua”, alegra-se. Pedro Júnior, 7 anos, filho de uma lavadeira, diz que gosta de estudar. Janine, 6 anos, filhade um carvoeiro, se extasia: “Adoro fazer tarefa”.
A pequena Samara, 5 anos, completamente maravilhada, confessa: “Eu tô escrevendo o alfabeto...” Emocionada, Alessandra Santana, 28, professora cedida pela prefeitura, comemora: “É o melhor momento da minha vida profissional”. Voluntária, a simpática Michely Cardoso, 22, dá aulas de música e inglês. Encantada, a moça, com cara de menina, admite: “Mais do que ensinar, sou eu que aprendo com eles”. Amiga de Suely e Lúcio, a bibliotecária aposentada Sônia Pires, 55, saiu de Brasília para passar uma semana em Arinos. Ela se engajou no projeto desde o início. “Essas crianças precisam mais do que apoio material. Elas precisam de afeto”.
Maria Lenita Macedo, 63 anos, professora aposentada de Arinos, explica por que está ali: “O voluntariado completa a gente”. E conta historinhas de ficção para crianças que quase não sabem sonhar. Faz Paulo, de 12 anos — filho de uma dona de casa e de um cortador de lenha analfabetos, com dois irmãos mais novos, sem banheiro em casa e sem saber ler, como os irmãos — planejar. “Eu quero aprender a ler”. Maria Eunice Silva, 27, a mãe dele, mareja os olhos: “Esse lugar foi uma coisa boa demais pra gente. Às vezes, eu acho que tô sonhando”.
E os sonhos de Suely não pararam por aí. “Fizemos apenas a primeira parte do projeto. Ainda falta muito. Estamos construindo mais cinco salas, uma cozinha, a lavanderia e o refeitório. Vamos fazer ainda um consultório médico e outro odontológico. E também, se Deus nos ajudar, quadras de esportes”, detalha.
Suely viveu o pior dia que uma mãe pode suportar. Chorou até sangrar por dentro. Os cabelos ficaram brancos. Chegou a romper com Deus. Reconciliou-se depois. Da extrema dor, teve um sonho. Viu uma cascata de luz. Alguém lhe dizia para salvar outras vidas. Quase morta, ela se encheu de forças. Enxugou o pranto e seguiu, mesmo despedaçada. Há uma semana, depois de uma luta de cinco anos, fez crianças que não têm banheiro em casa acreditar em contos de fada. No dia em que a filha morreu, Suely morreu junto. Mas, como missão, ressuscitou para salvar outras vidas. Esta história precisava ser contada.
Correio Braziliense