Casos como o do menino de 14 anos baleado na cabeça por um PM em Fortaleza são comuns em todo o país. Segundo levantamento do Ministério da Saúde, forças de segurança estatais assassinaram quase 400 civis em 2008
Primeiro o aceno ordenando parar. Distraído, o técnico em manutenção Francisco das Chagas de Oliveira, que voltava de um trabalho na companhia do filho no último domingo, continuou a guiar a moto. O desrespeito ao sinal dado pelo policial militar foi o suficiente para levá-lo a sacar uma arma, em plena via urbana de Fortaleza (CE), e atirar na cabeça de Bruce Cristian, que estava na garupa. A morte instantânea do garoto de 14 anos, provocada por quem é pago pelo Estado para oferecer proteção, está longe de ser um caso isolado. Quase 400 pessoas foram assassinadas no Brasil pelas polícias Militar e Civil em 2008, base mais atualizada do Sistema de Informações de Mortalidade (SIM) do Ministério da Saúde.
Tais óbitos são classificados pela pasta como “intervenção legal”, ou seja, ocorreram enquanto o policial tentava deter alguém que infringia a lei. Porém, ao lado da falta de preparo dos agentes e da ausência de punição exemplar, é a nomenclatura com que as mortes são registradas os fatores que mais contribuem para a impunidade, segundo especialistas. Os estados do Rio de Janeiro e de São Paulo, que respondem juntos por 323 dos 398 óbitos notificados em 2008, evidenciam o problema, de acordo com Sandra Carvalho, diretora da ONG Justiça Global.
“Enquanto aqui no Rio chamam de ‘auto de resistência’, São Paulo utiliza o termo ‘resistência seguida de morte’. É claro que essa classificação já induz a uma investigação tendenciosa, corporativista. Por que não classificar tudo como homicídio? A apuração é que tem de dizer se foi auto de resistência ou não”, critica Sandra. De acordo com a especialista, a diversidade de nomenclaturas no país acaba deixando o registro nacional, do Ministério da Saúde, também prejudicado. “O que temos nesse balanço são muitos casos de execução, mesmo que, devido a essa forma de classificá-la, são nomeadas como intervenção legal.”
A questão da falta de corregedorias para apurar de forma independente casos de policiais suspeitos de ações criminosas vem sendo levantada há tempos por especialistas em segurança pública como um dos fatores que incentivam as irregularidades. Como o chefe das ouvidorias são, quase sempre, indicados pelos comandantes ou pelo secretário da área de segurança, fica difícil ter investigações rigorosas e punições exemplares para os agentes fora da lei. Outro problema destacado insistentemente por quem acompanha o tema da segurança é o treinamento precário. “No caso da PM, a maior causadora de mortes de civis, a capacitação vem naturalmente carregada de militarização. Ou seja, eles não vão para as ruas para proteger, mas sim para combater.”
“Desastrosa”
Embora o policial cearense que matou Bruce Cristian tenha dito, em depoimento, ter se tratado de um disparo acidental, a corporação do estado reconheceu a operação como “desastrosa” e abriu sindicância para decidir o destino do soldado, que pode ser expulso. O agente poderá, ainda, responder por homicídio, dependendo da conclusão das investigações. Pessoas que estavam passando pelo local no momento do crime afirmaram que o pai se debruçou sobre o corpo do filho ao perceber que Bruce tinha morrido. Enquanto isso, o policial teria se desesperado, perguntando-se o que havia feito e levado as mãos à cabeça.
O adolescente foi velado ontem na igreja que frequentava com a família, em Fortaleza. O pai de Bruce Cristian não se conformava com o desfecho daquela abordagem policial. “A pessoa que aponta a arma pelas costas para um ser humano, para uma criança, e atira, é um bandido. Que polícia preparada é essa? Que treinamento é esse?”, questionou Francisco de Oliveira.
SÃO PAULO É O CAMPEÃO EM FATALIDADES
» Os dados do Sistema de Informações de Mortalidade (SIM) de 2008, apurados pelo Ministério da Saúde, mostram que São Paulo foi recordista em mortes provocadas pela polícia: 189. Em segundo lugar vem o Rio de Janeiro, com 134 assassinatos. O terceiro colocado aparece muito distante das duas lideranças: Bahia, com 26 ocorrências. Não por acaso, depois da Região Sudeste, a que apresenta os piores números é a Nordeste. O Distrito Federal não registrou nenhuma morte em 2008. Entre o ano mais atualizado do SIM e o anterior, 2007, houve diminuição de mortes em todo o país — de 512 para 398.
» Memória
Tragédias rotineiras
Wesley Guilber Rodrigues de Andrade
Julho de 2010
Enquanto assistia à aula no Centro Integrado de Educação Pública Rubens Gomes, Zona Norte do Rio de Janeiro, o garoto de 11 anos foi atingido por uma bala perdida e morreu na hora. Policiais do 9º Batalhão da PM faziam uma operação nas imediações. A morte do menino levou o comandante do pelotão, Fernando Príncipe Martins, a ser exonerado.
Hélio Ribeiro
Maio de 2010
Um policial do Batalhão de Operações Especiais (Bope), a tropa de elite da Polícia Militar do Rio, matou por engano o morador do Andaraí, bairro da Zona Norte do Rio. Ao ver Hélio, 47 anos, na varanda de sua casa trabalhando com uma furadeira, o policial pensou que se tratava de uma arma e disparou. Hélio morreu na hora, na presença da esposa.
João Roberto Soares
Julho de 2008
Policiais militares do Rio de Janeiro confundiram o carro da mãe do garoto de 3 anos e o alvejaram com cerca de 20 tiros na Tijuca, Zona Norte da capital fluminense. Três balas acertaram João. A mãe chegou a jogar uma bolsa infantil para fora, para avisar que havia crianças no carro, mas a PM só parou de atirar quando a mulher desceu para socorrer o filho.
Maria Eduarda Ramos de Barros
Julho de 2008
A família de Maria Eduarda, 9 anos, saía de uma festa no bairro Cidade Universitária, Zona Oeste do Recife (PE), quando foi abordada por bandidos. Os assaltantes, armados com revólveres, teriam roubado bolsas, carteiras, telefones e joias. Quando iam embora, policiais militares chegaram ao local atirando. A família foi atingida pelos disparos. Maria Eduarda não resistiu.
Correio Braziliense
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